Infraestrutura para o Desenvolvimento com Sustentabilidade Socioambiental

Contribuições da Sociedade Civil para a Cúpula da Amazônia

Español / Protugués

Apresentação

Este documento apresenta contribuições de organizações e redes da sociedade civil dos países amazônicos para os preparativos em torno da Cúpula da Amazônia IV Reunião de Presidentes dos Estados Partes no Tratado de Cooperação Amazônica – OTCA, a ser realizado em Belém do Pará, nos dias 8 e 9 de agosto de 2023. Este documento complementa seis textos temáticos já apresentados conjuntamente pelo Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA), pela Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), e pela Assembleia Mundial pela Amazônia (AMA), em parceria com várias organizações indígenas da bacia amazônica e entidades da sociedade civil. Entendemos que o tema Infraestrutura para o Desenvolvimento com Sustentabilidade Socioambiental – abordando questões fundamentais sobre qual infraestrutura, para quem e para quê  – tem enorme relevância para o alcance dos objetivos da Cúpula da Amazônia. 

1. Uma nova visão sobre a infraestrutura

É preciso superar a velha ideia, ainda predominante, de que a infraestrutura é sinônimo de grandes obras de engenharia, caríssimas, altamente visíveis, definidas e executadas pelo governo e por grandes empresas, sem a necessidade de diagnósticos aprofundados sobre riscos socioambientais, viabilidade econômica e alternativas, com transparência e participação ativa da sociedade. Esse tipo de abordagem equivocada tem caracterizado grandes obras de infraestrutura, especialmente rodovias e grandes barragens, nos países amazônicos, inclusive no âmbito da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional da América do Sul (IIRSA).   

Uma nova agenda de cooperação entre os países amazônicos deve-se pautar nos seguintes conceitos sobre a infraestrutura para a Amazônia:1

  • A natureza como Infraestrutura – lembrando das palavras de Maura Arapiun, secretária do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns: “A principal infraestrutura da Amazônia é a floresta em pé”. As Soluções baseadas na Natureza (SbN) tratam a natureza como uma infraestrutura viva e essencial. Portanto, é preciso buscar soluções baseadas na convivência com os ecossistemas e os biomas endêmicos. 
  • A infraestrutura voltada para a qualidade de vida das populações locais: os bens e serviços da infraestrutura devem priorizar melhorias na qualidade de vida dos indivíduos, famílias e comunidades que compõem as populações locais, no campo, na floresta e nas cidades, à luz dos objetivos e metas da Agenda 2030 da ONU, contemplando: a) as atividades produtivas que contribuam para a segurança e soberania alimentar, e para a geração de emprego e renda, valorizando a sociobiodiversidade como caminho para diversificar a oferta de alimentos, fibras e materiais, com a criação de novas oportunidades de negócios, b) serviços de saúde, educação, mobilidade, conectividade, energia adequada e suficiente, conforto térmico e habitação, com atenção especial para as crianças e para as pessoas mais frágeis, ressaltando o lema adotado pelas Nações Unidas de “não deixar ninguém para trás”, e c) infraestrutura voltada para a valorização da diversidade cultural. Nesse esforço, é preciso que os investimentos em infraestrutura social e comunitária tenham efeitos duradouros sobre serviços e organização coletiva, onde as comunidades e suas organizações atuem como protagonistas centrais do desenvolvimento sustentável. 
  • Cuidados com médios e grandes projetos de infraestrutura: uma nova visão sobre infraestrutura para o desenvolvimento sustentável tem importantes implicações para o planejamento, licenciamento e financiamento de médias e grandes obras de infraestrutura, que incluem, entre outras: i) fortalecimento de instrumentos de análise prévia sobre impactos socioambientais (inclusive cumulativos) e viabilidade econômica, abordando cenários e investimentos alternativos, utilizando metodologias robustas, com participação cidadã e transparência, ii) respeito aos direitos de povos indígenas, comunidades tradicionais e outros grupos vulneráveis, de modo especial às mulheres e iii) articulação com estratégias de desenvolvimento local e regional com sustentabilidade socioambiental. 

2.  Fortalecimento de instrumentos de planejamento de políticas, programas e projetos de infraestrutura

Uma prioridade fundamental no processo de tomada de decisão sobre políticas e projetos de infraestrutura é a criação e/ou fortalecimento de instrumentos de planejamento na fase pré-projetos, especialmente nos setores de transportes e energia. Tal esforço deve envolver instrumentos inovadores de análise multicriterial, como Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) com  a utilização de metodologias participativas para a análise de oportunidades e riscos socioambientais, facilitando a identificação de melhores alternativas para a sociedade  – incluindo as comunidades locais – em termos econômicos, sociais e ambientais, descartando-se iniciativas que não se justificam sob a ótica do interesse público – considerando fatores como o nível de degradação ambiental e impactos adversos sobre comunidades locais, inclusive violações de seus direitos.

É fundamental que, antes do anúncio e da definição e tomada de decisão sobre quaisquer programas e projetos, os governos federais, em conjunto com governos sub-nacionais, considerem e avaliem profundamente as diferentes alternativas – por exemplo, diferentes rotas e modais no setor de transportes, e alternativas de transição energética no setor de energia – com análise antecipada de questões socioambientais e econômicas, inclusive necessidades de fortalecimento da governança territorial e agendas de desenvolvimento sustentável, antes do início de obras, tendo em vista os  efeitos antecipados de grandes obras, a partir de seu anúncio pelo governo. 

De forma complementar, uma prioridade deve ser o fortalecimento de instrumentos de planejamento, licenciamento ambiental e gestão de obras de infraestrutura, em nível de projetos, contribuindo para a antecipação da análise socioambiental. Nesse sentido, é preciso garantir melhorias na análise prévia de riscos e impactos socioambientais entre os principais instrumentos de planejamento de obras de infraestrutura.2

Reiteramos que uma nova conceituação sobre infraestrutura deve incluir políticas públicas descentralizadas, que apoiem soluções de infraestrutura baseadas em iniciativas de comunidades locais nas áreas de saúde, educação, saneamento básico, transporte e energia, fortalecendo a segurança e soberania alimentar e cadeias produtivas da sociobiodiversidade, gerando emprego e renda. 

Um novo acordo entre os países amazônicos, no âmbito da Cúpula da Amazônia, poderia prever o fortalecimento de instrumentos de planejamento estratégico nos setores de transporte e energia, possibilitando a análise participativa de alternativas e melhores escolhas em termos de benefícios sociais, econômicos e ambientais, evitando projetos de alto custo socioambiental que não se justificam.3  

Nesse sentido,  existe a necessidade de rever planos para a infraestrutura regional no âmbito da COSIPLAN – Conselho Sulamericano de Infraestrutura e Planejamento (ex-IIRSA), considerando ainda a necessidade de mudanças nos papéis de instituições multilaterais como a OTCA, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial e do Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe (CAF).   

 3.  Espaços de participação cidadã

É preciso ampliar e fortalecer a participação cidadã da sociedade, incluindo as comunidades locais potencialmente atingidas em instâncias de decisão sobre políticas, programas e projetos de infraestrutura. 

Nesse sentido, é fundamental internalizar no regramento de políticas, programas e projetos de infraestrutura a garantia do direito à Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e demais comunidades tradicionais antes da tomada de decisões que afetam seus territórios e direitos, respeitando seus protocolos comunitários, sempre que houver, em conformidade com a Convenção 169 da OIT e outra legislação vigente.4  Cabe ressaltar a necessidade de não confundir, como tem ocorrido frequentemente, a realização de Audiências Públicas – rito obrigatório do licenciamento ambiental de projetos –  com processos de consulta livre, prévia e informada.

4.   Fortalecimento da Governança Territorial

Conforme indicado acima, um passo essencial para viabilizar obras de infraestrutura em bases sustentáveis, promovendo um novo modelo de desenvolvimento pautado na economia da sociobiodiversidade (sociobioeconomia), é assegurar a governança territorial, fortalecendo a presença do Estado e as instituições de garantia do Estado de Direito, com medidas específicas voltadas para: a) planejamento e ordenamento territorial, priorizando o combate à grilagem de terras públicas, reconhecimento dos direitos territoriais de povos indígenas e outras populações tradicionais, reforma agrária e a criação, regularização e consolidação de unidades de conservação, c) proteção permanente dos rios e mananciais e, d) como ação imediata, o combate a crimes ambientais e garantias de proteção da vida de defensores da Natureza e dos direitos humanos.      

5.  Revisão de projetos de alto risco socioambiental e reparação de danos e passivos socioambientais

Existem projetos específicos no ‘pipeline’ da logística de transportes, do setor elétrico e na exploração de petróleo e gás que demandam reconsideração e priorização, em função de critérios socioambientais e econômicos.  

O legado de impactos negativos de mega-empreendimentos de infraestrutura, como as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira e a Rodovia Interoceânica ressalta a necessidade de repensar grandes obras no bioma Amazônia, inclusive em áreas de fronteira entre os países, assim como a reparação às populações locais e comunidades tradicionais drasticamente afetadas.  

Assim, é preciso estabelecer programas robustos, com transparência, participação popular popular, marco legal e recursos adequados, voltados para ações de reparação integral de danos socioambientais associados às violações de direitos de comunidades locais e reparação de passivos ambientais nos territórios afetados por grandes obras de infraestrutura que se encontram em operação.  

Uma análise mais criteriosa de riscos socioambientais (inclusive impactos cumulativos e sinérgicos) e de viabilidade econômica demonstra que, em muitos casos, há grandes empreendimentos em fase de planejamento que simplesmente não se justificam, e que existem melhores opções para atender ao interesse público, com responsabilidade ambiental e respeito aos direitos das populações locais. 

Nesse sentido, apresentamos as seguintes propostas de encaminhamento:

No setor de energia:

  1. Suspensão de planos para a construção de novas hidrelétricas na Amazônia, considerando seu alto risco socioambiental, inclusive quanto a impactos cumulativos e sinérgicos.
  1. Considerando os elevados riscos de poluição de aquíferos, lençóis freáticos e corpos d’água, com graves implicações para serviços ecossistêmicos, conservação da biodiversidade, saúde pública e atividades econômicas (por exemplo, a agropecuária e o turismo) e levando em conta ainda os riscos de abalos sísmicos, especialmente em áreas urbanas, suspensão de projetos de fraturamento hidráulico (‘fracking’) enquanto persistirem tais riscos.  
  1. Declaração do bioma Amazônico como zona de exclusão dos planos para novas explorações de petróleo e gás, considerando seus elevados riscos socioambientais e a necessidade de compatibilidade com políticas públicas relacionadas às mudanças climáticas, conservação da biodiversidade e respeito aos direitos humanos.

No setor de transportes:

  1. Fortalecimento do marco legal e institucional sobre o planejamento e o licenciamento ambiental de logística de transporte e seus respectivos modais (rodovias, hidrovias, ferrovias), garantindo a realização de análises robustas sobre riscos socioambientais, inclusive impactos cumulativos com outros empreendimentos, e alternativas, com transparência e participação popular, respeitando o direito à consulta livre, prévia e informada junto aos povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais. 
  1. Realização de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) com metodologias participativas no setor de transportes, em situações como dos corredores logísticos de transporte de commodities, abordando riscos socioambientais e o potencial de impactos cumulativos e sinérgicos entre empreendimentos no mesmo território (p.ex. rodovias, hidrovias e portos, ferrovias) considerando as alternativas.

6.  Cidades amazônicas

Para a construção de políticas públicas que venham ao encontro da realidade regional. É preciso um novo olhar sobre as cidades amazônicas que considere o desenvolvimento urbano como processo fundamental para a sustentabilidade e bem-estar humano na região, com infraestruturas adequadas ao contexto local. Cidades e assentamentos humanos devem ser protagonistas na implementação de medidas de fortalecimento econômico, de conservação socioambiental, de serviços e de promoção da diversidade sociocultural, bem como de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. 

7.  O papel de Instituições Financeiras

Que sejam fortalecidas as políticas socioambientais de instituições públicas nacionais e multilaterais que financiam obras de infraestrutura –  como o BNDES, CAF e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) – no que se refere à análise prévia e gestão de riscos, bem como no apoio a iniciativas locais de infraestrutura para o desenvolvimento sustentável nos territórios, mantendo um diálogo aberto com os movimentos sociais e outras organizações da sociedade civil. Tais iniciativas de desenvolvimento lideradas por comunidades devem ser reforçadas por instituições financeiras privadas.  

Finalizando, solicitamos a incorporação das propostas de ação apresentadas neste documento, junto com as propostas inseridas em outros textos temáticos do FOSPA/REPAM/AMA, nos documentos oficiais em preparação para a Cúpula da Amazônia.  

17 julho de 2023

Assinam:

Fórum Social Panamazónico – FOSPA / forosocialpanamazonico.com/

Rede Eclesial Panamazônica  /  repam.org.br

Assembleia Mundial pela Amazônia – AMA  / asambleamundialamazonia.org/

GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental / gt-infra.org.br / contato.gtinfra@gmail.com

Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – FBOMS /  fboms.org.br/

Grupo de Trabalho Amazônico – GTA

Observatório do Clima / oc.eco.br

Foro Cambio Climático y Justicia Socioambiental – FMCJS / fmclimaticas.org.br/


  1. Sobre a nova conceituação de infraestrutura, recomendamos a leitura do estudo do GT Infra em parceria com o Prof. Ricardo Abramovay (USP), intitulado  Infraestrutura para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia, que, depois de diversas consultas a diferentes comunidades da região amazônica, propõe quatro novas dimensões para repensar conceitos sobre a infraestrutura numa ótica de desenvolvimento sustentável (dimensões, que também se aplicam a outros biomas).  Veja a publicação: ​​https://tinyurl.com/nhc2kt7a  Veja também o artigo de Marcio Santilli do Instituto Socioambiental (ISA): Infraestrutura para Comunidades, Mídia Ninja, 16/03/2023, https://midianinja.org/marciosantilli/infraestrutura-para-comunidades/
    ↩︎
  2. Os instrumentos de planejamento e licenciamento ambiental podem ter um caráter sequencial, permitindo a identificação e amadurecimento de bons projetos em termos econômicos e socioambientais, com base em estudos técnicos consistentes e processos transparentes e participativos de tomada de decisão, evitando ao mesmo tempo o avanço de empreendimentos que não se justifiquem sob a ótica do interesse público. ↩︎
  3. Como contribuição nessa direção, indicamos a recém-lançada Nota Técnica “Critérios para análise e classificação de empreendimentos de infraestrutura propostos para inclusão no Plano Plurianual (PPA) e no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI)”, elaborada pelo GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental, Instituto Energia e Meio Ambiente (IEMA)  Instituto Socioambiental (ISA), Transparência Internacional – Brasil e Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas (Ibraop). https://energiaeambiente.org.br/wp-content/uploads/2023/06/notatecnica_infraestrutura2023.pdf ↩︎
  4. Para saber mais sobre protocolos comunitários, veja: https://observatorio.direitosocioambiental.org/protocolos/ ↩︎

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